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A HARMONIOSA E RELAXANTE ARTE DA DIGITAÇÃO
Mem Ex Group
Dizendo isso, o gerente saiu...
Aline olha espantada para a tela de seu ultrapassado computador. A tecla Shift já estava caindo de tanto levar pancada. Vez por outra a tela piscava e perdia a cor.
Olha para o relógio no canto da tela. Duas horas para o término do expediente.
Aline sua frio.
Abre quatro janelas ao mesmo tempo. Quase levando seu Windows 95 a bancarrota. Vai exigir mais do que sua poderosa máquina é capaz de outorgar. O telefone não para de tocar. Ela digita o texto em inglês no meio da planilha. Tenta corrigir e o Windows trava. Tenta reiniciar. Uma tela azul dizendo que o micro foi desligado incorretamente aparece. Um tal de Scandisk. Uma barra de execução para em 56 %. Setores ruins foram encontrados. Os olhos de Aline faíscam. Ela manda o software continuar. Ele pergunta se quer salvar as alterações num disquete. Cadê a caixa com disquetes? Sai da sala e vai até a secretaria do setor buscar disquetes. Não tem disquetes. Vai ao setor do outro corredor buscar disquetes. Quando volta o micro apagou. Acalme-se; diz a si mesma. Esbarrou no estabilizador. Religa o micro. Recomeça o suplício.
Enfim aparece a tela de início do Windows. E depois some.
Dois minutos de tensão.
Começa a entrar o Windows. Uma tela de logon solicitando senha aparece. Ela coloca a chave e a senha. Outro minuto de espera. O Windows diz que não tem nenhum servidor disponível pra efetuar o tal do logon.
Acalme-se Aline.
Ela tecla Enter
Aparece a tela de detecção automática de hardware. O Windows encontrou um novo componente. Como assim, novo componente? Ela tenta contornar o detetor, diz que não quer instalar nada. Aparece outra coisa detectada. E depois outra. Enfim começam a aparecer os ícones do sistema. Entra um aviso dizendo que a placa de vídeo está com problemas.
Acalme-se Aline.
O detector de vírus descobriu uma virose. Vírus de macro. No arquivo em que ela estava trabalhando. Quer limpar o arquivo? Ela responde que sim.
O antivírus apaga o arquivo.
Ela põe a testa sobre o mouse. Acaba clicando no ícone do correio. Infelizmente a rede não está entrando e o programa trava. A custa de muito CTRL-ALT-DEL ela destrava o Windows. Recomeça a digitar. Ferozmente. Aparece na porta o cara da CPD dizendo que vai ter um desligamento geral de dez minutos as três e quinze. Ela olha para o relógio. Duas e quarenta e cinco. O telefone toca novamente. Aparece uma tela azul dizendo que houve um erro de sistema. O coração congela. Ela dá um Enter sem esperança e o Windows volta. Acalme-se Aline. A menina da limpeza aparece e esbarra na mesa. Os papéis voam pelo chão. Acalme-se Aline. Dez minutos para o desligamento acontecer. Três dos textos estão adiantados, falta reformatar a tal planilha. A tecla "a" travou no meio do terceiro texto. Duas páginas e dois mil e quinhentos e vinte e dois "a"s depois ela consegue destravar. Quatro minutos para o desligamento. As luzes se apagam. Eles adiantaram o desligamento. O No-break resistiu bem. O micro ainda está ligado. Ela tem cinco minutos para salvar o que digitou antes de perder tudo. Quer dizer, teria se o indicador de energia do No-break indicasse plena carga e não 50%. Começa a tentar terminar e salvar os textos. O protetor de tela entra. Não, agora não, pensou. O No-break começa a piscar. Ela precisa de tempo! Pense Aline! Pense Aline. Decide desligar o monitor para economizar energia, fechar os programas e salvá-los às cegas. Quando está para digitar o último comando o No-break apaga por completo. Três segundos depois seria a vez do micro. Nessa hora a luz retorna. Ela reacende a tela e o último texto ainda está lá. Então suspira aliviada. Entra o gerente e avisa que devido a uma viagem pela manhã já não terá muita urgência dos memorandos. A tela azul de erro fatal do Windows aparece nesse momento. Ela fixa os olhos na tela azul e então olha para o gerente. Na sua mente só aparece a expressão:
Fatal error.
Fatal error.
Fatal error.
Fatal error
By WeLL
A HARMONIOSA E RELAXANTE ARTE DA DIGITAÇÃO
Mem Ex Group
Dizendo isso, o gerente saiu...
Aline olha espantada para a tela de seu ultrapassado computador. A tecla Shift já estava caindo de tanto levar pancada. Vez por outra a tela piscava e perdia a cor.
Olha para o relógio no canto da tela. Duas horas para o término do expediente.
Aline sua frio.
Abre quatro janelas ao mesmo tempo. Quase levando seu Windows 95 a bancarrota. Vai exigir mais do que sua poderosa máquina é capaz de outorgar. O telefone não para de tocar. Ela digita o texto em inglês no meio da planilha. Tenta corrigir e o Windows trava. Tenta reiniciar. Uma tela azul dizendo que o micro foi desligado incorretamente aparece. Um tal de Scandisk. Uma barra de execução para em 56 %. Setores ruins foram encontrados. Os olhos de Aline faíscam. Ela manda o software continuar. Ele pergunta se quer salvar as alterações num disquete. Cadê a caixa com disquetes? Sai da sala e vai até a secretaria do setor buscar disquetes. Não tem disquetes. Vai ao setor do outro corredor buscar disquetes. Quando volta o micro apagou. Acalme-se; diz a si mesma. Esbarrou no estabilizador. Religa o micro. Recomeça o suplício.
Enfim aparece a tela de início do Windows. E depois some.
Dois minutos de tensão.
Começa a entrar o Windows. Uma tela de logon solicitando senha aparece. Ela coloca a chave e a senha. Outro minuto de espera. O Windows diz que não tem nenhum servidor disponível pra efetuar o tal do logon.
Acalme-se Aline.
Ela tecla Enter
Aparece a tela de detecção automática de hardware. O Windows encontrou um novo componente. Como assim, novo componente? Ela tenta contornar o detetor, diz que não quer instalar nada. Aparece outra coisa detectada. E depois outra. Enfim começam a aparecer os ícones do sistema. Entra um aviso dizendo que a placa de vídeo está com problemas.
Acalme-se Aline.
O detector de vírus descobriu uma virose. Vírus de macro. No arquivo em que ela estava trabalhando. Quer limpar o arquivo? Ela responde que sim.
O antivírus apaga o arquivo.
Ela põe a testa sobre o mouse. Acaba clicando no ícone do correio. Infelizmente a rede não está entrando e o programa trava. A custa de muito CTRL-ALT-DEL ela destrava o Windows. Recomeça a digitar. Ferozmente. Aparece na porta o cara da CPD dizendo que vai ter um desligamento geral de dez minutos as três e quinze. Ela olha para o relógio. Duas e quarenta e cinco. O telefone toca novamente. Aparece uma tela azul dizendo que houve um erro de sistema. O coração congela. Ela dá um Enter sem esperança e o Windows volta. Acalme-se Aline. A menina da limpeza aparece e esbarra na mesa. Os papéis voam pelo chão. Acalme-se Aline. Dez minutos para o desligamento acontecer. Três dos textos estão adiantados, falta reformatar a tal planilha. A tecla "a" travou no meio do terceiro texto. Duas páginas e dois mil e quinhentos e vinte e dois "a"s depois ela consegue destravar. Quatro minutos para o desligamento. As luzes se apagam. Eles adiantaram o desligamento. O No-break resistiu bem. O micro ainda está ligado. Ela tem cinco minutos para salvar o que digitou antes de perder tudo. Quer dizer, teria se o indicador de energia do No-break indicasse plena carga e não 50%. Começa a tentar terminar e salvar os textos. O protetor de tela entra. Não, agora não, pensou. O No-break começa a piscar. Ela precisa de tempo! Pense Aline! Pense Aline. Decide desligar o monitor para economizar energia, fechar os programas e salvá-los às cegas. Quando está para digitar o último comando o No-break apaga por completo. Três segundos depois seria a vez do micro. Nessa hora a luz retorna. Ela reacende a tela e o último texto ainda está lá. Então suspira aliviada. Entra o gerente e avisa que devido a uma viagem pela manhã já não terá muita urgência dos memorandos. A tela azul de erro fatal do Windows aparece nesse momento. Ela fixa os olhos na tela azul e então olha para o gerente. Na sua mente só aparece a expressão:
Fatal error.
Fatal error.
Fatal error.
Fatal error
By WeLL
Jagunçada.
Uma história de cão entre um homem e uma mulher.
Cantador de causos, o contador, de uma perna e de uma braço e de um olho e de uma orelha só, chegou de novo na cidade, e a multidão se acomodou. Era a última vez que contaria a história que por cinquenta anos contou, como jura feita a muito, a quem não se sabe, a quem não se viu.
Trazia sempre aos lombos, um alforge, e uma sacola com alguma coisa que só mostraria quando chegasse a hora.
A cidade em rebuliço esperaria o entardecer, porque no dia ditoso, quando contasse a Jagunçada, pela derradeira vez, o que levara consigo por quase cinquenta anos, finalmente, iria mostrar.
Como falava o cantador. As crianças em polvorosa, pois todos queriam ouvir, outra vez a jagunçada, outra feita, outro senão, a interminável história e sua canção.
E assim que entardeceu, começou, o contador a contar seu causo:
Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo. Era ele assim conhecido. Cabrunco odioso de mal. Jagunço afamado da região que compreende a pequena faixa entre Ponta-porã e Juazeiro do Norte. Cabra jurado de morte por Cabra-ruim era um homê marcado pra morrer. Qual como cabra defunto seria tido, aos olhos da populaça trêmula, que a muito adentrava as noite pra sepultar os matado, daquele cabra matador.
Longe de mim, criatura abestada, teu distino tá traçado, e num se aproxegue naum, que na várzea da artilharia pode sobrá tiro pra mim.
Assim excomungavam aos mortifundos, quando os coronéis avisavam que Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo estava pra chegar.
Fizeram-lhe, num dia nebuloso cujas sombras já se esvaem, emboscada ferina com os mais perversos matadores que o dinheiro podia comprar. Vinte e três homens, cada um com trinta quilo de balas, com mais facão na cinta que unha de jaburu nas mão, se atiraram incólumes pelas costas do caramunhão. Triste sina dos matuto que findaram entre as bala do marvado matador.
No mermo dia em que Cabra-ruim-de-más, chorou uma lágrima tormentosa pelo olho que ainda tinha, compungido o coração.
Pois nunca, em toda sua andança desgraçada como exímio matador, matara tão pouca gente de uma só feita.
Somente vinte e três...
Corpo que nem uma peneira, Cabra-ruim tava acostumado, mas lhe incomodava a média.
Homem macho que nem eu num mata menos de trinta. Como é que foi acontecer? Tô perdendo a postura, tô desvalorizado? Vinte e três! Só de raiva vou passar a cidadela no facão, pra essa gente miserável respeitar quem é o cão.
E assim seguia aquela praga, jagunço de renome, eta cabra ruim sim sinhô.
O afamado Coronel Desarraiga da Lima e Silva Teodoro, Capitão, azucrinado pelos feitos desta peste mortifúndia, arresolveu convocar o jagunço derradeiro, NA VERDADE, UMA MUIÉ. Amorosa da Caatinga linda. Mais conhecida como Diga-adeus-que-vais-morrer, de quem contava a lenda, seria o quinta cavaleira do apocalipse em fase de treinamento, convocada para tomar 'sastifação' com o recalcitrante marfegaçanho. Aquela muié sofrida, que perdera sete irmãos, pai, mãe e cabritos, nas fomes das secas incontáveis nas tormentas do sertão, se tornara numa lenda tamanha que fazia Maria-bonita parecê uma doce donzela sonhadora. Trocentos homens jaziam sem cabeça pelas estradas sertanejas, frutos da pontaria daquela órfã impressionante.
O dia inda tava claro quando a jagunça Diga-adeus entrou na cidade sofrida de Nazaré das Farinha. Uma romaria de matuto rumou para qualquer lugar, entre o ontem e o amanhã, porque sabe-se lá que iria acontecer quando os dois cabra da peste, arresolvessem se bulir.
Esticando o queixo duro, com voz de paca atarracada grunhiu Diga-Adeus:
Pra onde ocês vão, raça de matuto fugidor?
Nóis vamo pra duas légua depois que o cafundó-dos-Judas termina! Gritou a populaça.
E assim se ia a aterrorizada multidão.
Cabra-ruim se encontrou com Diga-adeus as duas da tarde em frente do cemitério. Cabra-ruim com uma pá nas mão, sorriu amostrando os dois dentes escurecidos que ainda tinha e gritou:
Vem cá minha nega, já preparei procê um lugar, bicha safada, pra tu num tê que se aperreá com aluguel. Nunca mais. Tá querendo tu segurá o toro brabo com as mão? Vô tê cortar aos poco, pra tu aprendê a respeitar os cabra-macho, muié despeitada!
Cumpadre Cabra-ruim, homem perverso de dá dó, aprumado na arte do exterminío, tá na hora, mormente chega pra qualquer um de nós, de intendê que as pessoa são que nem os indivíduo. Que bobagem é espirrar na farofa. E que boi lerdo bebe água suja.
Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo nem se coçou. Um tédio só. Eta cabra faladora, essa tal de Diga-Adeus.
Tá querendo me matá falando, muié?
Mãos crispadas de Diga-adeus sobre as empunhaduras dos facões de cortar cana:
Ao assustado a própria sombra assusta? Burro velho não toma freio? Cabra-ruim-de-más; cachorro comedor de ovelha, só matando. Diz então, cabrunco, como é que tu qué morrê.
Cabra-ruim responde.
Cavalo bom e muié valente, a gente só conhece na chegada.
Cabra-ruim cospe no chão. Se é que aquilo que saiu e sua boca podia ser chamado e cuspe. Levanta a aba da chapeleira de couro de toro castrado a unha por ele mesmo, dá uma rabanada de olho, aquele tipo de olhar enviezado que quando não aleija, mata, três fungadas e um buchicho e então fala:
Tanto acoar em sombra de corvo, pelo menos me diverte um pouco. Mas tu sabe que te dou valor. Por isso tu vais morrer aos pouco, coisas que não faço com todo mundo, só com os privilegiado. Agora vamo nóis cerra a noite, cabrita marcada pra morrer.
A tiranbança desenfreiada começou ali, os dois pulando mais que corisco em dia de temporal.
E assim foi.
No mais porreta de todos os enfrentamentos.
Incendiaram Nazaré das Farinha. Entraram por dentro de três plantação de cana, e num deixaram uma mardita em pé. Os gados desperado daquele confronto intenso, correram pro lugar errado e se atinaram em meio aos matadores. A boiada foi destroçada pela força dos peleantes. Era rebenque subindo, talagaço feito chuva e nada parava o gasqueaço daquele intenso entrevero.
E assim foi por quase três dias.
Cabra-ruim já tava todo cortado. A calça de couro de cabra de Diga-Adeus mostrava sua perna torneada, arranhada e suada, mas de todo modo a perna de uma muié.
Pela primeira vez em toda sua vida, Cabra-ruim vacilou. Diga-Adeus arfava quase sem se mantê de pé. A mão tremia enquanto seu olhar se fixava na fronte do caramunhão. E pela primeira vez em toda sua lida, Diga- Adeus se admirou de um homem.
Mas, partiram resolutos um pra dentro do outro, que aquilo num era hora de namorá.
Eta confronto arretado das terras queimadas, onde o sol inclemente decidiu jamais se afastar!
E assim foi. Por mais dois dias.
E quem sabe quando essa peleja intensa, arresolvia terminá?
Inté que chegaram as tropas di coroné Serapião, amigo de Rufoespino, parente
do afamado Coronel Desarraiga da Lima e Silva Teodoro Capitão. Trezentos jagunços treinados pelas mãos do Capitão.
Os cabra cercaram a cidade armados até a unha dos dedos dos pés.
Vixe Maria! Como falava o contador! Então cansado, o cantador de causos, o contador, de uma perna e de uma braço e de um olho e de uma orelha só, por ordem da promessa feita, dispois ocês hão de saber a quem, arresolveu terminá.
Pra encurtar essa lida, desta história renhida, como fiz, foi minha sina, agora livre vou-me embora, acabou-se, ai vou eu, pois na vertente dos dias, no cochicho da noite e quando fina a promessa, me vou.
Lentamente o contador abriu a bolsa, para o espanto da multidão, e delas cairam dois cranios, feitos pedaços, no chão.
Os cranios foram rolando batendo entre as pedras dos paralelepípedos caiados de branco, até pararem.
E um menino de sopetão, tomado de grande assombro, gritou e fêz a pergunta, do meio da confusão:
Porventura são esses os cranios de Cabra-ruim e da desgraçada Diga-Adeus? Os infame matador, naquele mês de horror, viraram enfim vatapá?
A multidão acompanhou em coro a pergunta:
Responde, cantador!
O contador entortou a boca, balançou a cabeça, deu um silvo e sua mão declinou.
Então quase que rindo, não se conteve e bradou:
Esses são os corenéis Serapião e Capitão, dos trezentos condenado, só eu sobrei, ninguém mais não... Cabra-ruim e Diga-Adeus fizeram o que nóis nunca iria esperar. Quando se viram cercados, decidiram por de lado as desavenças e entraram por dentro da Caatinga, os mardito. Nóis procuramos por três semanas. Nos embrenhando pela ata virgem, perdemos, inda naquela semana, mais de trinta cabruncos. Foi quando com armas tiradas Padre Cícero sabe da onde, Aquela muié bandida e aquele capanga de nome, arresolveram nos matá. Me deixaram viver pra que eu contasse a história, levando eles inté a fazenda de Serapião e Capitão.
A multidão ovacionava a história renhida, daquela luta marfadada, daquela jagunçada terrível.
E de novo o menino curioso sem se conter, sem segurá, questionou:
E que fim levou, os jagunços, desta história que finda?
O contador parou. Se virou. Olhou sério a multidão, agora silenciada. Os olhos atentos, o murmúrio do vento. Então falou:
Intão, mormente finda a lida, a sina... juntaram os trapo, as ferida e a dor,
e si uniram pelos sagrados votos do matrimônio...
E sem se virar de novo,
o cantador...
...disse adeus.
Autor:
Welington José Ferreira
Jagunçada.
Uma história de cão entre um homem e uma mulher.
Cantador de causos, o contador, de uma perna e de uma braço e de um olho e de uma orelha só, chegou de novo na cidade, e a multidão se acomodou. Era a última vez que contaria a história que por cinquenta anos contou, como jura feita a muito, a quem não se sabe, a quem não se viu.
Trazia sempre aos lombos, um alforge, e uma sacola com alguma coisa que só mostraria quando chegasse a hora.
A cidade em rebuliço esperaria o entardecer, porque no dia ditoso, quando contasse a Jagunçada, pela derradeira vez, o que levara consigo por quase cinquenta anos, finalmente, iria mostrar.
Como falava o cantador. As crianças em polvorosa, pois todos queriam ouvir, outra vez a jagunçada, outra feita, outro senão, a interminável história e sua canção.
E assim que entardeceu, começou, o contador a contar seu causo:
Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo. Era ele assim conhecido. Cabrunco odioso de mal. Jagunço afamado da região que compreende a pequena faixa entre Ponta-porã e Juazeiro do Norte. Cabra jurado de morte por Cabra-ruim era um homê marcado pra morrer. Qual como cabra defunto seria tido, aos olhos da populaça trêmula, que a muito adentrava as noite pra sepultar os matado, daquele cabra matador.
Longe de mim, criatura abestada, teu distino tá traçado, e num se aproxegue naum, que na várzea da artilharia pode sobrá tiro pra mim.
Assim excomungavam aos mortifundos, quando os coronéis avisavam que Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo estava pra chegar.
Fizeram-lhe, num dia nebuloso cujas sombras já se esvaem, emboscada ferina com os mais perversos matadores que o dinheiro podia comprar. Vinte e três homens, cada um com trinta quilo de balas, com mais facão na cinta que unha de jaburu nas mão, se atiraram incólumes pelas costas do caramunhão. Triste sina dos matuto que findaram entre as bala do marvado matador.
No mermo dia em que Cabra-ruim-de-más, chorou uma lágrima tormentosa pelo olho que ainda tinha, compungido o coração.
Pois nunca, em toda sua andança desgraçada como exímio matador, matara tão pouca gente de uma só feita.
Somente vinte e três...
Corpo que nem uma peneira, Cabra-ruim tava acostumado, mas lhe incomodava a média.
Homem macho que nem eu num mata menos de trinta. Como é que foi acontecer? Tô perdendo a postura, tô desvalorizado? Vinte e três! Só de raiva vou passar a cidadela no facão, pra essa gente miserável respeitar quem é o cão.
E assim seguia aquela praga, jagunço de renome, eta cabra ruim sim sinhô.
O afamado Coronel Desarraiga da Lima e Silva Teodoro, Capitão, azucrinado pelos feitos desta peste mortifúndia, arresolveu convocar o jagunço derradeiro, NA VERDADE, UMA MUIÉ. Amorosa da Caatinga linda. Mais conhecida como Diga-adeus-que-vais-morrer, de quem contava a lenda, seria o quinta cavaleira do apocalipse em fase de treinamento, convocada para tomar 'sastifação' com o recalcitrante marfegaçanho. Aquela muié sofrida, que perdera sete irmãos, pai, mãe e cabritos, nas fomes das secas incontáveis nas tormentas do sertão, se tornara numa lenda tamanha que fazia Maria-bonita parecê uma doce donzela sonhadora. Trocentos homens jaziam sem cabeça pelas estradas sertanejas, frutos da pontaria daquela órfã impressionante.
O dia inda tava claro quando a jagunça Diga-adeus entrou na cidade sofrida de Nazaré das Farinha. Uma romaria de matuto rumou para qualquer lugar, entre o ontem e o amanhã, porque sabe-se lá que iria acontecer quando os dois cabra da peste, arresolvessem se bulir.
Esticando o queixo duro, com voz de paca atarracada grunhiu Diga-Adeus:
Pra onde ocês vão, raça de matuto fugidor?
Nóis vamo pra duas légua depois que o cafundó-dos-Judas termina! Gritou a populaça.
E assim se ia a aterrorizada multidão.
Cabra-ruim se encontrou com Diga-adeus as duas da tarde em frente do cemitério. Cabra-ruim com uma pá nas mão, sorriu amostrando os dois dentes escurecidos que ainda tinha e gritou:
Vem cá minha nega, já preparei procê um lugar, bicha safada, pra tu num tê que se aperreá com aluguel. Nunca mais. Tá querendo tu segurá o toro brabo com as mão? Vô tê cortar aos poco, pra tu aprendê a respeitar os cabra-macho, muié despeitada!
Cumpadre Cabra-ruim, homem perverso de dá dó, aprumado na arte do exterminío, tá na hora, mormente chega pra qualquer um de nós, de intendê que as pessoa são que nem os indivíduo. Que bobagem é espirrar na farofa. E que boi lerdo bebe água suja.
Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo nem se coçou. Um tédio só. Eta cabra faladora, essa tal de Diga-Adeus.
Tá querendo me matá falando, muié?
Mãos crispadas de Diga-adeus sobre as empunhaduras dos facões de cortar cana:
Ao assustado a própria sombra assusta? Burro velho não toma freio? Cabra-ruim-de-más; cachorro comedor de ovelha, só matando. Diz então, cabrunco, como é que tu qué morrê.
Cabra-ruim responde.
Cavalo bom e muié valente, a gente só conhece na chegada.
Cabra-ruim cospe no chão. Se é que aquilo que saiu e sua boca podia ser chamado e cuspe. Levanta a aba da chapeleira de couro de toro castrado a unha por ele mesmo, dá uma rabanada de olho, aquele tipo de olhar enviezado que quando não aleija, mata, três fungadas e um buchicho e então fala:
Tanto acoar em sombra de corvo, pelo menos me diverte um pouco. Mas tu sabe que te dou valor. Por isso tu vais morrer aos pouco, coisas que não faço com todo mundo, só com os privilegiado. Agora vamo nóis cerra a noite, cabrita marcada pra morrer.
A tiranbança desenfreiada começou ali, os dois pulando mais que corisco em dia de temporal.
E assim foi.
No mais porreta de todos os enfrentamentos.
Incendiaram Nazaré das Farinha. Entraram por dentro de três plantação de cana, e num deixaram uma mardita em pé. Os gados desperado daquele confronto intenso, correram pro lugar errado e se atinaram em meio aos matadores. A boiada foi destroçada pela força dos peleantes. Era rebenque subindo, talagaço feito chuva e nada parava o gasqueaço daquele intenso entrevero.
E assim foi por quase três dias.
Cabra-ruim já tava todo cortado. A calça de couro de cabra de Diga-Adeus mostrava sua perna torneada, arranhada e suada, mas de todo modo a perna de uma muié.
Pela primeira vez em toda sua vida, Cabra-ruim vacilou. Diga-Adeus arfava quase sem se mantê de pé. A mão tremia enquanto seu olhar se fixava na fronte do caramunhão. E pela primeira vez em toda sua lida, Diga- Adeus se admirou de um homem.
Mas, partiram resolutos um pra dentro do outro, que aquilo num era hora de namorá.
Eta confronto arretado das terras queimadas, onde o sol inclemente decidiu jamais se afastar!
E assim foi. Por mais dois dias.
E quem sabe quando essa peleja intensa, arresolvia terminá?
Inté que chegaram as tropas di coroné Serapião, amigo de Rufoespino, parente
do afamado Coronel Desarraiga da Lima e Silva Teodoro Capitão. Trezentos jagunços treinados pelas mãos do Capitão.
Os cabra cercaram a cidade armados até a unha dos dedos dos pés.
Vixe Maria! Como falava o contador! Então cansado, o cantador de causos, o contador, de uma perna e de uma braço e de um olho e de uma orelha só, por ordem da promessa feita, dispois ocês hão de saber a quem, arresolveu terminá.
Pra encurtar essa lida, desta história renhida, como fiz, foi minha sina, agora livre vou-me embora, acabou-se, ai vou eu, pois na vertente dos dias, no cochicho da noite e quando fina a promessa, me vou.
Lentamente o contador abriu a bolsa, para o espanto da multidão, e delas cairam dois cranios, feitos pedaços, no chão.
Os cranios foram rolando batendo entre as pedras dos paralelepípedos caiados de branco, até pararem.
E um menino de sopetão, tomado de grande assombro, gritou e fêz a pergunta, do meio da confusão:
Porventura são esses os cranios de Cabra-ruim e da desgraçada Diga-Adeus? Os infame matador, naquele mês de horror, viraram enfim vatapá?
A multidão acompanhou em coro a pergunta:
Responde, cantador!
O contador entortou a boca, balançou a cabeça, deu um silvo e sua mão declinou.
Então quase que rindo, não se conteve e bradou:
Esses são os corenéis Serapião e Capitão, dos trezentos condenado, só eu sobrei, ninguém mais não... Cabra-ruim e Diga-Adeus fizeram o que nóis nunca iria esperar. Quando se viram cercados, decidiram por de lado as desavenças e entraram por dentro da Caatinga, os mardito. Nóis procuramos por três semanas. Nos embrenhando pela ata virgem, perdemos, inda naquela semana, mais de trinta cabruncos. Foi quando com armas tiradas Padre Cícero sabe da onde, Aquela muié bandida e aquele capanga de nome, arresolveram nos matá. Me deixaram viver pra que eu contasse a história, levando eles inté a fazenda de Serapião e Capitão.
A multidão ovacionava a história renhida, daquela luta marfadada, daquela jagunçada terrível.
E de novo o menino curioso sem se conter, sem segurá, questionou:
E que fim levou, os jagunços, desta história que finda?
O contador parou. Se virou. Olhou sério a multidão, agora silenciada. Os olhos atentos, o murmúrio do vento. Então falou:
Intão, mormente finda a lida, a sina... juntaram os trapo, as ferida e a dor,
e si uniram pelos sagrados votos do matrimônio...
E sem se virar de novo,
o cantador...
...disse adeus.
Autor:
Welington José Ferreira
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